quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Três passos para a ironia da memória.

1º - Permitir menos vivência talvez seja o segredo para não sacrificar-se ao esquecimento. Inevitável, tampouco doloroso, é a perda de memória. Ainda assim, seria necessária a vivência de algo para apagar outrem. Contradição verdadeira, dizia Jane Austen sobre a ironia. A memória se gaba daquilo que lhe convém e sorri disfarçadamente para aquilo que lhe confunde. Se a “Memória deve ser a lembrança e não o esquecimento do traumático, para que ele não se repita", na formulação de Adorno, então as cores das flores do guardador de rebanhos não devem se repetir apenas porque suas flores são como lembranças. Flores-cores mutantes que se lembradas passageiras e derradeiras de um tempo mórbido-remoto, não devem ser memoradas. O que pode ser lembrado altera o nível do esquecimento? O que se esquece para sempre é o que eternamente permanece in memória? Imagens que persuadiam. Eis a memória. Como lembrar o que não foi vivenciado e ainda como viver de lembranças? Como lembrar o vivenciado se o que se vive é o que vive e não o vivido? Viver por comparação ou por compensação? Não, meu irmão, viver de emoção, dizia um poeta esquecido, ou melhor, sequer nunca lembrado.

2º - “não viver do passado”, aconselha quase todos os personagens de novelas e da vida. Isso significa (no modo clichê de se pensar) que certas coisas precisam ser esquecidas para que outras sejam valorizadas. Como se num passe de mágica, coisas substituíssem outras. A questão não é assim tão banal de se espreitar. Existe todo um processo de substituição, uma balela que inclui o desejo, a fantasia, a imaginação e muitas outras coisas que demandam uma memória de leitura impressionante. Primeiro, se trocássemos o do pelo no, viver NO passado, provocaríamos um deslocamento físico do tempo, o que seria interessante para começarmos a pensar com poderíamos lembrar do passado num futuro próximo. Depois de viver NO passado, voltaríamos ao problema inicial, o de viver Do passado: seria um eterno retorno do recalcado com finalidade sem fim. Sendo o “achismo” muito bem vindo, conclui-se que todas as pessoas vivem DO passado justamente porque não podem voltar para ele. Se pudessem, viveriam de novo, fariam outras coisas e mudariam suas lembranças (lembranças essas muito suspeitas). Portanto, viver DO passado é algo como brilhar eternamente numa mente sem lembrança.

3º “Assim um horizonte se esquece num horizonte que se levanta”. O problema é quando se descobre que, inevitavelmente, as pessoas e as coisas que as acompanham são esquecidas mesmo. Esse momento de descoberta acontece ao deparar-se com todos os armários lotados de papéis de toda ordem, cartas, fotografias, cartões de cinema, de espetáculos, de viagens, de banco e documentos de toda espécie quase inimaginável. Essa acumulação só garante o esquecimento. Pois quando lembrados, lembram como haviam sido esquecidos e de como puderam dar-se à perdição. Por que não deixar tudo onde estava? Tudo em seu tempo perdido mesmo. Contrariado ainda mais. Tudo não servirá para muito, nem para pouco; nem para o bem, nem para o mal. Estão lá, estiveram lá. Não é isso o que importa: para que servem. O que importa é que quando nasce o sol, o outro já sumiu. A intensidade da luz nunca é a mesma. Como ser então afetado da mesma forma? Jamais poderão ser servos ou servidos. O objeto só é de desejo porque deseja ser lembrado. Sem objeto, sem lembrança. Quantas coisas pessoais, quantas coisas de pessoas ou quantas pessoas e suas coisas foram apagados de sua memória? Quais foram as pistas, rastros que se dissiparam? O que é provido de demasiada importância é sem dúvida o que se apaga. Porque está em algum lugar que não pertence a nada. Somente está em algum lugar como no ônibus, no sonho, na voz, no odor, no canto do pássaro, no vagão, na lua, na calçada, no olhar, no sangue, no copo, na galinha, no fogo, no café, no choro do cachorro. Está em todas as coisas e em nenhuma delas ao mesmo tempo. As próprias coisas são os próprios motivos da memória. E sorri.

Por Carol Lara (01/01/2009)
Argumento: E. M. Mello e Castro
* jurisprudência reservada aos encontros autorais

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